O câncer jurídico da interpretação “extensiva”

22/05/2023

Em que pese atuar em diversas áreas do Direito, especialmente na seara contenciosa, minha formação acadêmica e experiência profissional majoritária se deram no Direito do Trabalho. Nestas duas décadas de atuação diária no microcosmo da justiça do trabalho, costumo criticar com bastante frequência o que eu chamo de “interpretação extensiva” sobre a CLT.

Destaco que nosso problema central não reside na CLT, haja vista que ela surgiu em 1943 com o motivo nobre de tutelar e regular as relações de trabalho, criando direitos sociais relevantes para melhor dignificar a atuação dos trabalhadores, com olhar especial aos mais pobres, base da nossa economia.
Sem embargos da óbvia crítica que se deve fazer ao excesso de regulação (leia-se de direitos), algo sem precedentes no mundo e que torna o Brasil com este escandaloso número: representamos menos de 2% da população, mas possuímos cerca de 82% das ações trabalhistas mundiais!

A grande crítica que faço é que a justiça do trabalho interpreta propositalmente de forma generosamente “extensiva”, acrescentando direitos aos trabalhadores que a CLT não previu. Isso causa um efeito nefasto à segurança jurídica das relações de trabalho, pois as empresas nunca conseguem mensurar as surpresas interpretativas do percurso.
Mas este tema merece outros textos dedicados exclusivamente. Deixemos para outro dia.

A questão que trago para discussão aqui nestas curtas linhas é a recente decisão do TSE que cassou o mandato de deputado federal do ex-Procurador da Lava-Jato Deltan Dallagnol. Ler o voto do relator Benedito Gonçalves me fez lembrar das críticas que sempre fiz à justiça do trabalho e sua interpretação extensiva.

À absoluta margem da lei, a Corte simplesmente condenou uma hipotética tentativa de fraude do deputado. É uma curiosa interpretação jurídica: a condenação pela leitura de pensamento! Observe trecho do voto do Ministro Relator: “Referida manobra impediu que os 15 procedimentos administrativos em trâmite no CNMP em seu desfavor viessem a ensejar aposentadoria compulsória ou perda do cargo”.

Absurda decisão causou espécie no ex-ministro Marco Aurélio Mello, que atuou no STF (Supremo Tribunal Federal) por 31 anos, o qual afirmou à Folha que ficou “perplexo” com o entendimento adotado pelo TSE. “Foi uma interpretação à margem da ordem jurídica”. E prosseguiu: “Eu fiquei perplexo porque soube hoje vendo o noticiário que sequer PAD havia”.

Com efeito, a legislação determina que integrantes do Ministério Público que pedem exoneração com PAD (Processo Administrativo Disciplinar) pendente devem ser declarados inelegíveis. O ex-coordenador da Lava-Jato não respondia a procedimentos dessa natureza quando se desligou da instituição, em 2021.
Portanto, a decisão do TSE, em nosso entendimento, violou a segurança jurídica, pois, claramente, não houve fraude à lei. A decisão é extensiva porque cria uma hipótese de inelegibilidade que a lei não prevê e, pior, sancionando um ato que naquele momento era lícito, pois, quando o ex-Procurador pediu a exoneração, o processo preliminar não tinha relevância jurídica, não era um ato ilícito. Concordar com a decisão seria assumir que o tribunal poderia escolher qual seria o momento gerador da inelegibilidade.

Em outras palavras, o ministro leu na norma uma proibição que não está expressa lá. O legislador, quando fez a norma, poderia ter dito isso, mas não disse. A proibição foi para um caso específico: o pedido de exoneração quando da existência ativa de PAD. Logo, por meio de interpretação extravagante e extensiva, o tribunal acabou alargando a hipótese de inelegibilidade.


Marcelo Fortes Giovannetti, graduado e pós-graduado em Direito pela PUC/SP, com especialização em Direito Empresarial do Trabalho, Direito Concorrencial e Regulatório FGV.
Contato: marcelo.fortes@mfglaw.com.br.