Quando o pensamento voa...

04/09/2023

Américo Perin 

Conversávamos sobre saudade. E, de repente, me apercebi que tenho saudade. Essa coisa doída que só se sente e que os portugueses tão bem conheceram e definiram no tempo das suas grandes navegações. Tempos em que não se podia mandar notícias e pior: não se podia recebê-las também! A saudade independe de qualquer recordação de felicidade ou de tristeza, de tempo mais feliz, menos feliz. Saudade até mata! 

“Da minha infância querida, que não volta mais”... (Casimiro). Mas vida tem de ser vivida. Ela tem de acontecer e, acontecendo, leva com ela as pessoas, os lugares e deixa lembranças... E a vida acontece todos os dias e vai deixando saudade e com ela fica meio que uma sensação de perda. Pois é. Mas eu lhe digo que, pessoalmente, não sinto que perdi nada, apenas gastei... Gastei tempo, emoções, corpo e alma. E gastar não é perder, é apenas usar até consumir. Minha infância foi sem lágrimas, foi amada e protegida. Minha mocidade, igual a todas: coração inquieto que não sabe o que quer, ou quer demais... Sonhos, muitos sonhos. Então, a mocidade... A Três Lagoas do Mato Grosso daquele tempo, quando ainda não existia o do norte nem do sul: era tudo uma coisa só, onde o gado dividia espaço com o “areião”, com os matadores de aluguel, com os trabalhadores que represavam o rio Paraná e construíam a primeira usina do conjunto de Urubupungá, que, segundo aprendi com o seu Carlos, traduzido do tupi-guarani quer dizer “bosta de urubu”. 

Então, na bem construída Vila Piloto, nós éramos felizes. Centro comercial, ruas em círculo, escola, hospital e até prefeitura! E ali, no encontro das pessoas vindas de todos os lados do Brasil – inclusive índios, sem documento nem referência -, juntaram-se também muitos paraguaios. E essa mistura de cultura e costumes criou um ambiente bonito e gostoso de se viver pela grandeza cultural que propiciava. Morávamos na Rua 19, na Rua 20, na 21... E assim por diante. 

E, na Rua 20, conheci o Seu Carlos. Casado com Dona Tila e pai do Carlinhos, do Tuca, do Paulo, da Márcia, da Terezinha, da Tilinha e da Elda, que era filha do coração... Junto com eles, a simplicidade trouxe também para morar na casinha simples, construída de madeira, a felicidade. Na rua sem calçada nem calçamento, nos fins das tardes quentes de Mato Grosso, a porta da sua casa era o encontro de todos nós. Sentados nos banquinhos feitos pelo seu Carlos mesmo, usando pedaços de madeira achados aqui e ali, ele e Dona Tila bem devagarinho iam degustando um calicezinho de boa cachaça - da boa e uma dose só, na medida certa –, enquanto nos encantavam com as músicas da dupla Cascatinha e Inhana, sucessos da época... 

Do seu Carlos, tenho algumas lembranças. Temperamento explosivo, ao ponto de, quando saindo para a lua de mel com Dona Tila, acomodá-la no banco do vagão do trem e voltar para enfiar o cano do revólver na boca de um “saidinho” que ao vê-los passar teve a infeliz ideia de dizer que ela era “um pedaço de mau caminho”. Engoliu as palavras com o tempero do gosto do cano do revólver... Temperamento explosivo e ao mesmo tempo cativante pela alegria e sentimentalismo que irradiava. Seu Carlos amava as crianças e a esposa. Amava os amigos. Os amigos o amavam. Espirituoso, com uma frase divertida sempre pronta para qualquer situação, nos encantava e fazia-nos seus fãs... 

Então, entre uma seresta e outra, seu violão e sua voz afinada nos conduziam para onde o pensamento voa... Lá, de onde vem a dor que nos magoa e que vem ferir o coração... E hoje, hoje no meu peito é só saudade, do pungir da mocidade, no bater do coração... Saudade... Saudade todos nós temos na vida...